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sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

POLICIA MT:Uma abordagem transdisciplinar da violência sexual sofrida por criança índia.

Mauro Campello *

Os dois últimos ensaios publicados nesta coluna (dias 28.11 e 05.12), onde tratamos de temas inquietantes entre duas áreas do direito, o da criança e o indígena, referentes à violência sexual sofrida por criança índia e à aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente aos curumins, acabaram provocando acalorados debates nas salas de aula e nos corredores das academias de Roraima. 

Recebemos diversos e-mails de universitários, de professores e também de agentes sociais que concordavam ou discordavam, total ou parcialmente, com seus conteúdos e outros que indagavam sobre as formas de intervenções a serem adotadas no caso da violência sexual que sofreu a criança índia por parte de seu “tio”.

Então, resolvemos que nesta segunda-feira daríamos preferência a busca de uma resposta a esta indagação.  Trabalharemos neste ensaio a construção de uma solução que se funda na transdisciplinariedade da abordagem ao caso, ou seja, no respeito às opiniões de diversos campos do conhecimento humano que estarão atuando simultaneamente sob o mesmo fato.            

O abuso sexual de criança índia deve ser visto tanto como uma questão jurídica, de violação aos direitos da criança, como um problema de saúde física, mental e também antropológico, que por isso envolve não só as agências de proteção à criança, como os profissionais do direito, da saúde e da Fundação Nacional do Índio.

As agências de proteção deverão intervir para garantir a integridade física e psicológica da criança índia vitimizada, no sentido desta receber os atendimentos médicos e psicológicos necessários ao caso e que não venha sofrer novamente abuso sexual, enquanto os operadores da lei deverão buscar a responsabilização do abusador. 

Dessa maneira, os profissionais da saúde estabelecerão programas de tratamento para lidar com as seqüelas físicas e psicológicas da violência sexual sofrida pela criança índia, enquanto a FUNAI colaborará para que os diversos profissionais que atuam no atendimento do caso possam compreender a cultura, tradições e costumes da comunidade indígena que pertence aquela, para aplicarem as medidas protetivas mais apropriadas.

O envolvimento dos profissionais de diversas áreas na análise do abuso sexual de criança índia faz-se exigir uma abordagem integrada e transdisciplinar, onde cada qual deve colaborar com o outro, a fim de que se possa alcançar um resultado positivo para a vitimizada.

Acreditamos que os vários agentes envolvidos nas diferentes intervenções do caso, por exemplo, psicólogo, assistente social, médico, juiz, advogado, promotor, delegado, conselheiro tutelar, antropólogo e etc, devem estar coordenados para não confundir os papéis.

Sobre este tema, a profª. Maria Amélia de Azevedo afirma, com bastante propriedade, que estas diferentes intervenções podem ocorrer quase simultaneamente e será a diversificação concomitante dos liames entre os diferentes campos e não a adição de resultados de várias relações e técnicas complementares se sucedendo que possibilitará um efeito sinérgico.

Assim, será extremamente útil para o caso da criança índia abusada sexualmente por seu “tio”, que o conselho tutelar, a justiça, a FUNAI e as entidades de atenção à saúde de vítimas de abuso, trabalhem simultaneamente e de forma articulada, para garantir que a criança índia receba o atendimento à sua saúde, que não continue sendo violentada e que o agressor seja responsabilizado ou mesmo afastado do convívio da vitimizada, na forma da lei ou de suas tradições.

A criança índia ao sofrer abuso sexual, caracterizado no descuido e na desatenção daqueles que tinham o dever de protegê-la, acaba se situando no que a doutrina resolveu denominar de situação de risco pessoal e social, obrigando a intervenção imediata do conselho tutelar, a fim de aplicar medida protetiva autorizada pelo ECA.

Este tipo de violência, quando impingidos na infância, muitas vezes leva a uma internalização dessa prática como “normal”, e acaba fixando esta no imaginário da criança vitimizada, que, mais tarde, se transfere para o seu mundo adulto. A esta criança vitimizada devemos proporcionar-lhe o quanto antes uma intervenção terapêutica.

Logo, a criança índia passará a ser credora de atendimentos médicos e psicossociais especializados para vítimas de abuso sexual, a ser garantido pelo conselho tutelar e, neste caso, com o apoio e acompanhamento pelo órgão tutor – FUNAI, a fim de respeitar as características culturais do grupo indígena.

Em que pese existir opiniões contrárias, negar a criança índia o acesso às intervenções médicas e psicossociais e mantê-la segregada na reserva, como animal exótico junto com seu abusador, correndo o risco de novo ataque, é desrespeito intolerável aos foros humanitários que a ela são devidos.

O Brasil sempre foi exemplo de integração e manda nossa tradição proteger e cuidar da índia vitimizada do abuso sexual, trazendo-a ao nosso convívio para os atendimentos emergenciais e depois em sua comunidade, a fim de que se garanta o bem maior vida, com respeito e dignidade. 

O conselho tutelar ao aplicar a medida de proteção deverá inserir a criança vitimizada em um contexto que lhe permita um desenvolvimento bio-psico-social pleno, sempre respeitando, no caso, a especificidade cultural da comunidade indígena. 

Ressalta-se que esta medida poderá ser aplicada isolada ou cumulativamente, bem como substituída a qualquer tempo e deverá ser aplicada levando-se em conta as necessidades pedagógicas da criança índia.

Evidentemente que o conselho tutelar deverá realizar o chamado “estudo de caso”, onde se verificará a necessidade ou não da aplicação de outras medidas protetivas, como por exemplo, a institucionalização da vitimizada em entidade abrigo, com a finalidade de dar continuidade ao tratamento médico ou deixá-la a salvo de ser novamente abusada, ou ainda, representar ao ministério público estadual para que judicialmente afaste o agressor da comunidade indígena ou mesmo de sua moradia.

Entendemos que o agressor do abuso sexual, apesar de culpado, deve também ser encarado como vítima, a reclamar tratamento e a necessária punição como forma de contenção. A nossa maior preocupação neste caso deve ser em garantir que toda criança índia tenha uma convivência no âmbito de sua comunidade de forma saudável, infenso à promiscuidade com abusadores sexuais, sejam estes índios ou não-índios.

Toda criança deve ficar afastada da marginalidade em qualquer lugar do mundo, seja na cidade, na sua família, em entidade de atendimento, seja também numa aldeia indígena, pelo único fato de ser uma pessoa em desenvolvimento, merecedora da proteção integral – forma de inclusão social.

Portanto é nosso dever velar pela dignidade da criança índia, abusada sexualmente por um membro de sua comunidade, pondo-a a salvo de novo tratamento desumano e violento

* Professor de direito da criança na UFRR, UERR e Faculdade Estácio/Atual da Amazônia; desembargador do Tribunal de Justiça de Roraima; diretor da Escola do Judiciário de Roraima 2011/2013; MBA em Política, Estratégia e Gestão Pública pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ/2007; e pós-graduação em Violência doméstica contra criança pela Universidade de São Paulo – USP/2000 - maurocampello@tjrr.jus.br

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